The Childe & You Won’t Be Alone - Motelx 2023

Em análise, vamos olhar para os filmes The Childe e You Won’t Be Alone, assim como a natureza experimental da programação do Motelx. A 17ª edição do festival continua até dia 18, no Cinema São Jorge, em Lisboa.

The Childe - ★★★★

De Park Hoon-jung, o argumentista do épico ‘I Saw The Devil’, chega-nos ao Motelx mais uma aposta da Coreia do Sul, que dança à volta de subgéneros de terror, sendo mais um thriller de ação repleto de uma violência extrema que, dependendo do espetador, poderá ou não ser mais difícil de digerir do que o suposto ‘terror clássico’, merecendo sem dúvida o seu lugar no cartaz de um festival que continua anualmente a mostrar-nos a versatilidade do género, e como as suas influências se transportam para outros tipos de filme.

Parece fazer parte do mote do Motelx apresentar o terror num estado meta, transportando-o para diferentes géneros, desde ação, à comédia, e ao drama, como é o caso de You Won’t Be Alone de Goran Stolevski, sobre o qual falaremos a seguir, circulando de volta ao que é considerado o terror clássico, os sobrenaturais e os slashers que imortalizaram o género, e que, no fim de tudo, são os pilares do terror puro que nós adoramos.

O terror sente-se em todo o lado, na vida quotidiana, nas crises económicas, no crime, nos dramas e desafios pessoais, e no sobrenatural escapista que faz a audiência pular da cadeira e suar da testa ao visualizar fantasias fantasmagóricas representadas soberbamente no ecrã. Toda essa natureza experimental tornam o Motelx num palco essencial em Portugal para qualquer adepto de cinema e até mesmo para os espetadores casuais, que poderão encontrar joias cinemáticas que não passam no cinema mainstream.

Com isto, e retornando ao ponto inicial, The Childe é mais uma aposta da Coreia do Sul, que remonta à premissa do clássico ‘I Saw The Devil’, com perseguições em série e surpreendentes revelações ao estilo coreano.

Marco, um lutador de boxe filipino-coreano, participa em todo o tipo de esquemas para ganhar dinheiro, desde lutas em ringues ilegais e apostas desportivas, a trabalhos no submundo do crime, para conseguir amealhar dinheiro suficiente para a operação da mãe. Ao descobrir que o pai que nunca conheceu vive na Coreia do Sul e é abastado, decide procura-lo com o intuito de o forçar a pagar pela operação.

No avião, ao ser escoltado pela equipa de advogados do pai, que têm todo o aspeto de assassinos profissionais, é abordado por um indivíduo bem vestido, carismático e enigmático que se apresenta como seu amigo, e assim que aterra começa a persegui-lo e a chacinar todas as pessoas que o acompanham, apenas para o deixar viver e continuar a persegui-lo antes de finalmente revelar as suas intenções.

The Childe é uma história de dois protagonistas, em que a narrativa acaba por ser carregada por Kim Seon-ho, que interpreta o não nomeado assassino stalker. É uma personagem que parece tirada de uma banda desenhada - elegante, flamboyant e peculiar, tem traços de uma psicopatia e personalidade altamente imprevisíveis. Veste-se de fatinho e gravata de qualidade para executar altas acrobacias atléticas, mas tem pudor de se sujar de sangue e molhar-se na chuva, e esconde enigmaticamente as suas intenções enquanto goza com Marco, que passa o tempo todo a correr pela sua vida.

Este é um filme que não se leva muito a sério, com elementos de comédia espalhados por cenas de tensão, com o humor de Kim Seon-ho e as suas idiossincrasias, e ao estilo de um bom thriller coreano, explode eventualmente em plot twists, deixando, no entanto, alguns buracos na narrativa pelo meio. Ainda assim, viemos pela viagem/perseguição, e a realização de Park Hoon-jung supera as lacunas do seu argumento, entregando-nos incríveis sequências de ação de violência extrema, em planos abertos que nos permitem acompanhar o que se passa. Sabemos onde as personagens estão, o ritmo das sequências é fantástico, e o balanço entre a ação e o desenvolvimento da história impedem que a mesma se torne aborrecida entre as perseguições e demonstrações de violência, suportadas por um excelente trabalho na montagem. The Childe é impecavelmente coreografado na tela de uma belíssima fotografia, com cores baças e limpas, e uma escolha de arte requintada entre florestas e interiores de mansões com design moderno, no que é passado na Coreia, e as ruas sujas de bairros pobres das Filipinas.

You Won’t Be Alone - ★★

Virando o flanco para You Won’t Be Alone, uma obra de natureza totalmente diferente, esta marca a estreia de Goran Stolevski na realização de longas metragens, e embora seja um filme de terror, acaba por trazer-nos mais uma mistura de géneros, com base no folclore da Macedónia.

Este tem lugar numa aldeia montanhosa no século XIX, e acompanha a vida de Nevena, uma rapariga que é raptada por um espírito de uma bruxa antiga e transformada em bruxa ela mesma. Nevena cresce muda após o encontro quase fatídico com a chamada ‘Wolf-Eateress’, e após esta assassinar e apoderar-se do corpo da mãe, torna-se a sua tutora enquanto vagueiam pelas montanhas da Macedónia.

Curiosa com a personalidade humana e desejando encontrar a sua própria humanidade, Nevena inicia uma jornada com vista a desconectar-se da bruxa tutora e integrar-se com os humanos, mas devido aos seus próprios poderes e natureza demoníaca, mata acidentalmente uma camponesa num celeiro, apoderando-se do corpo e assumindo a sua forma para finalmente se integrar.

You Won’t Be Alone é um conto curioso narrado a partir do ponto de vista de duas bruxas, as tragédias das suas vidas e animosidade para com os humanos, às vezes por culpa deles mesmo. Vemos Nevena a experienciar a condição humana no seu melhor e pior, tentando rir e chorar sem entender essas emoções, sucumbindo por vezes ao pior da sua natureza, e obrigando a mesma a apoderar-se de outro corpo e começar uma vida (ou integração) nova, desta vez com maior sabedoria. Esta obra aproveita a vida de Nevena para desafiar o papel dos géneros na sociedade, narrando as suas experiências na pele de mulheres e homens, e confronta-a com os desafios e privilégios dos mesmos.

Apesar de ser um filme de terror, este apresenta-se como um drama de época ficcional, pegando em elementos de body horror e sobrenatural para entregar uma obra com um ritmo de slow burn que se mantém firme durante quase duas horas. É um projeto com elementos de arthouse, filmado num aspect ratio muito quadrado, com uma cinematografia natural bela que tempera o filme com a aparência de cinema de autor independente.

Mesmo com todas as suas qualidades e originalidade, o passo narrativo é dolorosamente lento, apostando sistematicamente na mesma melodia trágica que acompanha todos os horríveis desfechos que se dão onde Nevena passa, e trava duplamente a ação ao abafar o som enquanto narra a história a partir do interior vazio dela, que tenta explicar o que sente, mas, por nunca ter falado na vida, passa por enormes dificuldades em expressar as suas próprias emoções.

Ainda que You Won’t Be Alone não seja um filme para todos, é certamente um programa importante para o festival, criado por um cineasta com uma visão cinemática incrivelmente artística, num género sem limites, que continua a missão do Motelx em divulgar novos artistas de todos os cantos do mundo, enriquecendo o conteúdo programado e alargando os horizontes do espetador para novas e inventivas formas de criar cinema.